quarta-feira, julho 27, 2005

Recortes do Tempo



Gosto de explicar aquilo que faço, gosto de explicar o funcionamento de certas coisas, como é o caso deste trabalho.
Esta série de recortes foi feita recentemente. Mas a base de onde recortei as imagens foi executada há muito tempo. Era uma placa de cartão onde eu jogava com os efeitos de atracção e repulsa entre a tinta de água e a tinta de esmalte. Ao longo dos anos, a minha pintura, e expressão plástica em geral, foi diminuindo a dimensão até criar ambientes intimistas. É o que eu pretendo quando coloco esta pintura em caixas que abrigam visões e memórias de montanhas. Assim, a partir de uma expressão gestual (feita na placa de cartão, há muitos anos) fui tentando uma figuração mais racionalizada e menos impetuosa, conjugando também estes contrários, tal como aconteceu com os materiais.

(Há coisas para as quais encontramos uma explicação, há outras cujo funcionamento é visto com mais nitidez por outros, aqueles que estão de fora, para que se evite a coincidência do sujeito com o objecto. Isto acontece também nos comportamentos. Às vezes temos tiques de que não nos apercebemos. Às vezes nem sequer temos consciência de que coxeamos, é preciso que alguém, fora de nós, nos faça constatar esta evidência.)

segunda-feira, julho 25, 2005

preservação do corpo

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O corpo é um engano. Tanto permanece mole nas manhãs de Verão, como acende os dedos nas ruas da cidade que nos sustenta.

sábado, julho 23, 2005

transparência mínima

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Desde que comecei a utilizar papel de seda colado sobre um suporte adequado, um pouco de cartolina, por exemplo, obtenho transparências que me interessam, para que se adivinhe o lado-de-lá, o para-além do imediato.
Este trabalho, realizado em 2003, é uma miniatura, como muitos outros (6,5 x 9,5 cm). Posso conseguir superfícies lisas ou enrugadas. Antes de chegar a este ponto, fiz muitos desenhos gestuais de montanhas recortadas e de linhas de horizonte.
Os trabalhos com colagem parecem-me um bom exemplo da fixação do gesto, ou seja, a secundarização de que tenho vindo a falar. Neste caso concreto esta explicação não é auto-análise, é uma tentativa de explicar o funcionamento de certa expressão plástica praticada por mim e por outros. Creio que isto se pode passar noutras formas expressão, como a poesia e a prosa, a música e a dança.

quinta-feira, julho 21, 2005

diálogo de surdos?

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Talvez seja possível cada um ver o que há de comum entre eles os dois: paredes, telhado, algum cimento. Até aqui têm coexistido lado a lado, cada qual com o seu exibicionismo, um por excesso, outro por defeito. Talvez seja possível o diálogo, a partilha de memórias, apesar de tudo.
Cada edifício podia contar ao outro como foi tratado pelas mãos dos homens, descrever a face dos construtores, a ambição dos proprietários. Ambos abrigam gente.
Ambos morrerão um dia, o mais velho primeiro, pela ordem natural das coisas.

terça-feira, julho 19, 2005

o misterioso caso

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Não sou dos que pensam que uma imagem vale mais do que mil palavras. Mas, por vezes, uma imagem tem tanta força que nos alerta para a tentação fácil de escrever lugares comuns.
Em situações muito difíceis, não cometer erros pode ser um processo de sobreviver, até que o momento de decisão chegue com a segurança desejada. Tanto na vida como no boxe.

segunda-feira, julho 18, 2005

autoclismos IV

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colagem de A. Ferra

A água é tramada



(ainda os autoclismos de inseridos no interior da parede.)

Depois que mudei de casa houve uma ruptura na canalização. Foi necessário substituir um tubo e o senhor Pedro G veio fazer esse trabalho de responsabilidade. Ele tinha mesmo um aparelho da “Bosh”, um detector de metal, para localizar o percurso dos canos. O Carlos - outro canalizador que eu conheci - não seria capaz de um trabalho desta envergadura, só no tempo do pai, canalizador também, ele poderia fazer executar tal tarefa, e como ajudante.
O senhor Pedro G, mostrou-se admirado de um autoclismo inserido na parede estar a funcionar tão bem. «É que estes avariam muito», dizia-me ele. Eu não lhe disse nada, mas ainda estava muito presente a mão habilidosa do Carlos que o tinha reparado de forma magnífica, havia quase dois meses. O senhor Pedro G., por sua vez, também me fez algumas revelações que merecem ser registadas. Se merecem credibilidade ou não, desconheço, mas fazem sentido: «o problema com estes autoclismos é a falta de peças, foram criados pela fábrica “Lusalite” que fechou depois do 25 de Abril». Aí é que parecia residir o problema das reparações, tarefa complicada. Só a capacidade do Carlos a inventar e adaptar peças pôde dar conta deste recado. E também um profundo “know how” sobre o funcionamento de certas coisas. Mas o senhor Pedro G., ainda que mais elaborado no seu ramo, também o tem, de outra maneira. Ele diz que consegue desactivar estes autoclismos, mantendo-os fixados na parede da casa de banho, usando moedas de vinte escudos das antigas, que ele conservou para isso, chegando mesmo a encontrar pessoas que lhas oferecem. «A moeda, juntamente com uma anilha, é que vai tapar o boiador» - as palavras são dele, e não as discuto. «Hoje podem também usar-se moedas de dois euros, mas claro, sai mais caro», dizia-me ele ainda.
Como pode ver-se, quando eu pensava que tinha esgotado a questão do mistério dos autoclismos inseridos na parede, surge esta nova achega. De facto as coisas são o que são, conforme as abordagens. Os olhares de Pedro são diferente e complementares dos olhares de Carlos. Mas, como dizia também um outro técnico de construção que veio ver a infiltração nesta casa, a água é tramada.
(Esta frase tinha já sido dita por outra pessoa que já mencionei nestes registos, um professor que se interessava por Harold Bloom e por problemas de canalização.) Mas uma coisa é dizer a água é tramada de ânimo leve - o que também não era o caso - , outra coisa é dizê-lo com um filosófico conhecimento de causa, num tom meditativo, reflectindo sobre um insondável mistério à volta da água. Este técnico de construção civil oscilava entre o sentido pragmático e o sentido filosófico, e parecia questionar a origem das coisas.
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Verdadeiramente, o mistério reside mais na água do que no autoclismo, podendo considerar-se a água uma estrutura profunda e o autoclismo uma estrutura de superfície, para utilizar, com alguma utilidade, o uso da terminologia da gramática generativa de Chomsky. Não é que me interesse particularmente esta abordagem gramatical da língua, não. O que posso é utilizar parte dessa abordagem para explicar apenas um assunto, pontualmente, sem tomar como absoluto, exclusivamente, um modelo de compreensão da realidade.
Porque os modelos constroem uma realidade, são mapas. Eu não posso dizer «a realidade não é assim», mas posso dizer o «teu modelo de compreensão da realidade é diferente do meu.»
Sei bem que não estou a ser original. De resto seria demasiado fácil e tentador referir-me à água em geral como um conteúdo latente, e à água que sai da ruptura do cano danificado (uma forma de protestar...) como conteúdo manifesto. Mas o modelo freudiano, aqui, de pouco ou nada me serve. (v. autoclismos I,II, e III, Junho)

sábado, julho 16, 2005

transpalâmpada

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Alguma coisa pode iluminar o nosso olhar sobre as partes da cidade que descobrimos. Mesmo quando lhe despem o carácter.
Há uma transparência mínima que ninguém e nada pode omitir.

quarta-feira, julho 13, 2005

"a poesia é pintura falante"

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(ut pictura poesis)

À poesia dita confessional falta-lhe o fingimento poético, sem o qual o poema se fica pelo “Ah...”, pelo “Oh....” e pelo “Ai”, metaforicamnte falando, claro. É como uma pintura gestual - imediata - a que falta a técnica para distingui-la de um acaso feliz ou infeliz.
No entanto a espontaneidade treina-se, o que parece contraditório.

A propósito do processo primário e secundário que, mais uma vez, acabo de sugerir (v. poesia e sonho neste blog), fica esta nota de
roda- pé :

Processo primário, processo secundário

Os dois modos de funcionamento do aparelho psíquico, tais como foram definidos por Freud. Podemos distingui-los radicalmente:
a) do ponto de vista tópico: o processo primário caracteriza o sistema inconsciente e o processo secundário caracteriza o sistema pré-consciente-consciente:
b) do ponto de vista econômico-dinâmico: no caso do processo primário, a energia psíquica escoa-se livremente, passando sem barreiras de uma representação para outra, segundo os mecanismos de deslocamento e condensação; tende a reinvestir plenamente as representações ligadas às vivências de satisfação constitutivas do desejo (alucinação primitiva). No caso do processo secundário, a energia começa por estar «ligada» antes de se escoar de forma controlada; as representações são investidas de uma maneira mais estável, a satisfação é adiada, permitindo assim experiências mentais que põem à prova os diferentes caminhos possíveis da satisfação.
A oposição entre processo primário e processo secundário é correlativa da oposição entre princípio de prazer e princípio de realidade.

(resumo do tema transcrito de “Vocabulário da Psicanálise” por J. Laplanche e J.-B. Pontalis)

segunda-feira, julho 11, 2005

como são as coisas por dentro?

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dá-lhe corda

Outros brinquedos que apareciam no meu tempo de criança eram os carrinhos de corda. Os carros andavam, porque se dava corda. Não havia carrinhos eléctricos, quer dizer, a pilhas, ou seja baterias que fornecessem a energia necessária. A corda é difícil de explicar como funciona, só abrindo um carro para vê-lo por dentro. Mas quando se abria um carro, ou qualquer outro brinquedo de corda, esse brinquedo ficava estragado, de certeza, para o resto da sua vida. Isto porque é muito mais fácil estragar do que compor, como é sabido, por isso é que há muita gente que ganha a vida a compor o que os outros estragam. A corda era feita com uma mola enrolada, enrolada, com uma chave, até quase não se poder mais. Se fosse forçada nas voltas podia-se partir a corda. Daí a importância do quase. Quando uma mola está apertada no seu enrolo, a única coisa que ela quer é desapertar-se e expandir-se. Esta expansão é que provoca o movimento. É como uma pessoa que tenha estado reprimida ou presa e, de repente, vem para a liberdade.

sábado, julho 09, 2005

a farda de cáqui

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imortalidade


Esta fotografia é tirada em Vila Nova de Ficalho, em 26 de Julho de 1935. Assim se lê no verso. O cenário é uma pintura decorativa, representando um caminho com flores à volta. Servia para qualquer fotografia, independentemente da diferença de escala provocada pela proximidade ou afastamento do modelo em relação a esse mesmo cenário.
No meu primeiro olhar, o homem parecia-me um militar da GNR. Mas não, é um guarda fiscal. Provavelmente não será da terra, porque os guardas fiscais nunca eram das terras onde prestavam serviço. Lembro-me de um que encontrei, uma vez, em Rio de Onor, nos anos setenta. Maldizia o isolamento e a distância. E lembro-me de outro ainda, virtual, o guarda Robalo, do conto “Fronteira” de Miguel Torga. Esse é que não era da terra, mas envolveu-se de tal maneira com Isabel, uma contrabandista daquela povoação, que se passou para outro lado, o dos contrabandistas. Encontrou o amor, venceu o isolamento, integrou outro espaço.
E com isto Torga escreveu um conto de mestria.

Este homem está com ar sério e em pose. Olha com determinação, sente que está a ser fotografado e fecha os olhos no momento do disparo, conforme verifiquei quando fiz zoom. Vai enviar a imagem a alguém, a imagem irá em vez dele.
Passo esta fotografia pelo scanner e submeto-a ao album das imagens. Coloco-a num draft e depois...publishing! Aqui está.
Observo o modelo: boca fria e fina, por baixo de um nariz recto e olhos olheirentos. Vejo-lhe o corpo rígido, numa farda feita de cáqui, um tecido para muito durar e resistir, quase tão resistente como a ganga original americana. Espada à cinta.

Já terá morrido, este homem? Mas vive agora mesmo, nesta imortalidade que pode ser vista em qualquer parte do mundo.

quinta-feira, julho 07, 2005

a defesa da poesia

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Ao folhaear a poesia de Ruy Belo encontrei um poema sobre a Marilyn Monroe, “Na morte de Marilyn Monroe”, cheio de barbitúricos contra a solidão, contra um sentido de vida desenquadrado. Ela não sabia como conviver com a solidão, não aprendeu, ninguém lhe ensinou. E, diz Ruy Belo, Perto de Marilyn havia aqueles comprimidos/seriam solução sentiu na mão a mãe/estava tão sozinha que pensou que a não amavam.
Ele próprio, Ruy Belo, traz para a poesia muita solidão. E, se calhar, morreu de solidão – ou da consequência da solidão –, enquanto estudiosos contam as vezes em que aparece o campo semântico que rodeia o abandono.

Há muita crueldade necessária na crítica literária, o que pode ser bom para escritores e leitores. E quem pensa na explicação profunda da criação poética, num sentido lato? Como nasce a obra, o verso, a imagem? É um mistério que vale a pena tentar sempre explicar, porque essa explicação contribui para a consciência do funcionamento do processo criativo. Mas, felizmente, todas essas tentativas originam frases inacabadas, para que o mistério permaneça, para que caiam por terra as racionalizações interpretativas, todavia indispensáveis ao exercício da leitura e da escrita.

“A Defesa da Poesia”, tradução portuguesa deste ensaio de Shelley (1792-1827), tem observações que, nos dias de hoje, achamos de mau gosto. Mas é necessário situar o texto no seu tempo e desenvergonharmo-nos da nossa pirosidade subjacente: Um poeta é um rouxinol que na escuridão canta a sua própria soledade com doces gorjeios;

terça-feira, julho 05, 2005

encenação da culpa

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A culpa, a culpa, o perigo de quebrar o silêncio, “chiu!”. Mas a fotografada olha de frente para a câmara e não para o suposto namorado.

sábado, julho 02, 2005

A verdade vem sempre ao de cima

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mil tormentos pedeci

Intrigou-me a alimentação da fornalha, quando vi um homem a enchê-la com uma massa acastanhada. Mas esta pasta ardia com a força do fogo e a água podia regular-se para oitenta ou noventa graus à saída da caldeira, até à entrada para o moinho onde se juntava à azeitona.
Hesito. Valerá a pena descrever o funcionamento do lagar, os martírios da azeitona, a evolução da tecnologia?
O azeite é o nosso corpo. Mas também a luz. Falarei dos mil tormentos que a azeitona sofre para se transformar, para dar a luz ao mundo? Sempre que estamos suspensos pelo nosso próprio umbigo, caímos na situação da centopeia que um dia resolveu contar as patas e ver como se deslocava. Acabou por tropeçar nas patas e cair. Ela, que sempre andou a direito, sem grandes complicações, a não ser uma ou outra irregularidade de certos pisos.
O lagar tem uma mó encostada ao lado da porta exterior, mó de pedra, das antigas, agora peça decorativa. Lá dentro, a azeitona moída é enfiada nos capachos e a prensa esmaga-a tanto quanto pode a força do motor que a move. Não vou descrever este funcionamento em pormenor, porque, afinal, o princípio básico tem séculos e séculos: moagem, prensagem e decantação. Este jogo há-de fazer-se sempre, esmerando-se sempre nas decantações finais. Porque de tudo o que vem da terra se separa o trigo do joio, como se separa a água do azeite, como nós nos juntamos e separamos uns dos outros.
O que me interessa verdadeiramente é reflectir na relação do azeite com a água que o acompanha desde que ele começa a ser quase azeite. Vão sempre lado a lado até ao fim do processo, até se separarem de vez. Para isso também se decantam as palavras, também se espremem as sílabas para se obter a refinação do texto. Senão tornam-se azeite baço, quase bruto, ou água ruça – como lhe chamam - sem a transparência que convida a ficar, para o olhar atingir o lado de lá.
A verdade é como o azeite, vem sempre ao de cima. Há coisas que queremos dizer e nem sabemos quais são. São verdades mergulhadas na terra, retorcidas como troncos de certas oliveiras. Alguns poetas tratam-lhes a delicadeza das folhas e pelos ramos anunciam a ressurreição das almas. As raízes são o inconsciente, dizem, tal como o azeite, só com muita adição de água se separa e vem ao de cima.
Mas fica sempre um lastro, um depósito, que já não tem decantação possível e vai de novo para a terra, até fertilizar de novo as oliveiras, num ciclo infinito.

sexta-feira, julho 01, 2005

sombra

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vai secar a lama este verão eterno onde o rosto se desfigura
de tanto querer olhar
apenas uma árvore,
apenas uma árvore para se dar um nome
para trocar as rugas do tronco ou de uma sombra,
nas margens deste rio que nem sequer tocam o céu,
o céu de um azul baço que acontece quando o equinócio muda
no último poema à serena morte sobre o rio
rodeado de casas com goteiras por onde escorrem sonhos
sobre fendas imprevistas


(mulheres e homens falam na traição do riso
sob paredes de aço, de tecidos inacabados nas fábricas do medo,
na esperança desfeita da mudança de clima
sem o aviso prévio das palavras,
dos sons do berço,
da grafia exacta)