terça-feira, outubro 23, 2007

silêncios




















Textos e colagens de António Ferra

(...)
7.


clara recebeu embasbacada a súbita notícia «gustavo morreu. Mataram-no!». Pouco depois corria para a morgue a identificar a palidez azulada do cadáver. Pessoas à porta, fatos negros, fogos fátuos e um cheiro a magnólia que vinha do fundo das caixas. Gritou. Era um grito ab-surdo que nem dionesco, duma raiva que lhe ia crescendo entre os ombros. Qual quê? Não, não seria gustavo, de certeza, apesar do anelar da mão esquerda esfacelada mostrar uma aliança baça. Mas disse que-sim, depois de em três minutos pensar que tudo estava para ser alterado no decurso. «Tudo bem, é o gustavo». Disse. Daí a nada era o funeral. Um funeral em que não estava ninguém. Nem os filhos. Apenas as sombras dos homens de capas negras esvoaçantes da agência funerária. Era este um segredo que desejava guardar só para si, bem longe daqueles gorilas em vias de intenção a quem a morte do marido interessava. O cemitério ficou cheio de camélias vermelhas. Alto de Santo Amaro, ali era, ali ficou uma falsa solenidade misturada com um intenso odor a alho.

(de "O Vermelho e o Negro")



















8.

Uma imigrante ucraniana, de face rosada, loiro cabelo curto sobre crânio provavelmente arguto, dirigiu-se-lhe interrogativamente. Queria saber qual a linha onde poderia apanhar comboio para Amadória. E recebeu informação, com promessa de sucesso na jornada. Mas algo mais trazia a imigrante, queria contributo para passagem de linha rápida. Tudo isto em português possível, deturpada que estava por tantas esperanças neste nosso país. Eu, da janela das traseiras, eu amador transformado em coisa armada, perdi de vista Suzana e apenas me deixava levar por esvoaçantes lenços de quase seda dos vendedores, entenda-se. Verdadeira era esta sensação de olhar o longe, hesitante, mas ON YOUR FEET! era o meu lema e retesei músculos à volta de fémur.
(de ON YOUR FEET in Silêncios Comprados)


















(...)
3.
Apeteceu-me olhar pela janela da repartição pública:
lá em baixo o lago, o largo sem r, o pente sem dentes. Perdi-me a olhar uma faixa de musgo que abrigava pássaros tardios, répteis da noite.
E, ainda mais ao sul, a praia estava iluminada pela luz artificial. Era uma luz crua, de um cinzento ácido que tornava o areal mais limpo. Talvez os barcos de recreio saiam nas tardes de sexta-feira, quando existem expectativas para o fim de semana.
À entrada da repartição estava um homem de fato coçado e gravata lustrosa que tinha como profissão plantar-se à porta dos cartórios notariais munido de bilhete de identidade, alugando-se como testemunha de alguém ou de qualquer coisa, como a dança das pombas nos lagos de pedra ou a herança transmitida entre flores da mesma espécie.
No fundo ele vivia de uma ténue serenidade exposta às intempéries ou aos rostos imperceptíveis pela luz coada das escadarias.

(...)
4.

Acabei por fazer alguns desacatos na repartição pública. A funcionária que me ia atender era uma mulher magra, com cerca de quarenta anos, cabelo louro altamente artificial, lábios roxos e vestido negro, como se fosse para um “party pris”, um bar ou para uma discoteca e não para atender homens e mulheres que faziam bicha contida e compacta.
Exaltara-me, de facto, quando me senti esquecido, abandonado e preterido, e feri com o olhar a funcionária. Porque os olhares podem ser tão violentos como as palavras e os gestos. Por isso fui preso e condenado. Acabei por perder amigos e família, dinheiro e prestígio social, apenas porque não distingui a funcionária etérea da mulher-quimera que me tem torturado toda a vida.

(de O Sobrevivente in "Olhar O Silêncio")


Estes livros serão apresentados em conjunto na Fabula Urbis, no dia 10 de Novembro. A apresentação estará a cargo de Viriato Teles