A verdade vem sempre ao de cima
mil tormentos pedeci
Intrigou-me a alimentação da fornalha, quando vi um homem a enchê-la com uma massa acastanhada. Mas esta pasta ardia com a força do fogo e a água podia regular-se para oitenta ou noventa graus à saída da caldeira, até à entrada para o moinho onde se juntava à azeitona.
Hesito. Valerá a pena descrever o funcionamento do lagar, os martírios da azeitona, a evolução da tecnologia?
O azeite é o nosso corpo. Mas também a luz. Falarei dos mil tormentos que a azeitona sofre para se transformar, para dar a luz ao mundo? Sempre que estamos suspensos pelo nosso próprio umbigo, caímos na situação da centopeia que um dia resolveu contar as patas e ver como se deslocava. Acabou por tropeçar nas patas e cair. Ela, que sempre andou a direito, sem grandes complicações, a não ser uma ou outra irregularidade de certos pisos.
O lagar tem uma mó encostada ao lado da porta exterior, mó de pedra, das antigas, agora peça decorativa. Lá dentro, a azeitona moída é enfiada nos capachos e a prensa esmaga-a tanto quanto pode a força do motor que a move. Não vou descrever este funcionamento em pormenor, porque, afinal, o princípio básico tem séculos e séculos: moagem, prensagem e decantação. Este jogo há-de fazer-se sempre, esmerando-se sempre nas decantações finais. Porque de tudo o que vem da terra se separa o trigo do joio, como se separa a água do azeite, como nós nos juntamos e separamos uns dos outros.
O que me interessa verdadeiramente é reflectir na relação do azeite com a água que o acompanha desde que ele começa a ser quase azeite. Vão sempre lado a lado até ao fim do processo, até se separarem de vez. Para isso também se decantam as palavras, também se espremem as sílabas para se obter a refinação do texto. Senão tornam-se azeite baço, quase bruto, ou água ruça – como lhe chamam - sem a transparência que convida a ficar, para o olhar atingir o lado de lá.
A verdade é como o azeite, vem sempre ao de cima. Há coisas que queremos dizer e nem sabemos quais são. São verdades mergulhadas na terra, retorcidas como troncos de certas oliveiras. Alguns poetas tratam-lhes a delicadeza das folhas e pelos ramos anunciam a ressurreição das almas. As raízes são o inconsciente, dizem, tal como o azeite, só com muita adição de água se separa e vem ao de cima.
Mas fica sempre um lastro, um depósito, que já não tem decantação possível e vai de novo para a terra, até fertilizar de novo as oliveiras, num ciclo infinito.
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