sexta-feira, setembro 03, 2021

Um dia na eternidade de Amadeu Baptista




 

    Revisitei agora alguns recantos da cidade onde nasci, através da leitura da poesia de Amadeu Baptista: «Um dia na eternidade».

    Tenho um sentimento contraditório em relação ao Porto, onde vivi com continuidade até aos dezoito anos. Sentimento do adolescente e do jovem adulto que percorria muitos dos lugares mencionados no livro deste poeta, mas também outros lugares dos rituais da minha iniciação, livrarias, como a Divulgação, o TEP, o Cineclube do Porto, o cinema Batalha, a Árvore, a galeria Alvarez, o café S. Lázaro e a Esbap…, para não ficar apenas circunscrito às sandes de presunto do Louro, à francesinha da Regaleira, aos tascos da Travessa dos Congregados, ao clima tedyboyesco à volta da Xai-Xai, ou aos bailaricos de garagem.

    Não tenho nenhuma saudade mórbida da cidade, mas mantenho uma certa dose de ternura pelo Porto, com família já quase toda desaparecida, e onde sobram ainda alguns amigos que conservo da infância e adolescência. Como me dizia um amigo que, tal como eu, deixou o Porto e se fixou em Lisboa «hoje era incapaz de viver no Porto». Ambos interiorizámos outros modelos, outro modo de estar e construímos família e amigos, ou seja, tudo o que torna impossível um regresso utópico ao granito húmido nesta fase da vida.


    A leitura de «Um dia na eternidade», levou-me a reler a cidade, mas também e a reler Amadeu Baptista onde reencontro a matriz da sua obra - a perda como ponto (ou porto, ou Porto) de partida para a interrogação sobre o enigma da poesia e da vida, os bons e os maus objectos da infância: «a ver o rio ao longe/e a lembrar-me do que foi a minha infância...», «mas era a língua de areia do cabedelo que me fascinava,/aquele surto de enigmas suspensos sob um céu sem refúgio». E isto a par do pormenor picturesco da dona adélia que «segurava na boca/uma multidão de alfinetes, que depois espetava/numa pequena almofada de veludo, todos em fila,/todos meticulosamente acomodados».

    Amadeu Baptista é sobredotado na sua agilidade poética, mas faz jus ao próprio labor, grande parte das vezes numa compulsão obsessiva da escrita no seu lado de poeta artífice «o poeta trabalha, mas não é o encarregado da obra,/ é antes serralheiro, estivador, escrivão das devassas,».

    O sentido da perda na sua poesia manifesta-se quase sempre através do afastamento/desaparecimento da mulher idealizada, que partiu: «por tanto te querer e não saber de ti./vou-me perder. o que queria era voltar ao número setenta/ e oito da rua monte dos judeus, voltar sessenta anos atrás,»

    No entanto, a memória do passado é motor de determinação e esperança na imagem que nos dá da poesia e da vida, «vem-nos tudo à memória, ainda que a ânsia/seja pelo que há-de ocorrer, por tudo o que sabemos perdido/ e queremos reencontrar neste caminho, em certo fio de água,/em certo campo aberto para que tudo se possa reconstruir a partir de nada,»

    De resto, o poeta Amadeu consegue interligar o espaço-Porto ao espaço-eu-poético, e a inquietação demonstrada ao longo das páginas mistura-se com uma cidade que para si perdeu referentes, embora conservando ainda os seus lugares emblemáticos, pois muita vida se conserva na cidade conservadora ao lado da cidade de Gaia, onde se continua, atravessando o rio, e onde Amadeu Baptista tem passado a maior parte da sua vida em interrogações que fazem lembrar questões levantadas por Manuel António Pina, que ele bem refere neste livro: «(MAP) Porquê a poesia/ e não outra coisa qualquer:/ a filosofia, o futebol, alguma mulher?»

    Ai da cidade que não queira ler este livro do Amadeu Baptista!

    Ai de quem não possa, através destes versos, confrontar-se com o seu passado - ou presente - onde se lê a identidade da pessoa e do velho burgo em imagens de uma grande intensidade: «quem sou nesta cidade? o que lhe devo para nunca me dar nada/ além dos respingos de luz que se levantam/sobre a pena ventosa, os caldeireiros, a sé?»

    São escassas as minhas palavras para falar da poesia dos outros. Socorro-me de uma selecção subjectiva de palavras e de versos, de momentos, de imagens, de acontecimentos. Felizmente não sou crítico encartado, aqueles a quem tantas vezes censuro por analisarem um livro quase só através de transcrições. No entanto não faz sentido omitir os últimos versos do livro «lembro-me, lembro-me. lembro-me de tudo, lembro-me de estar cansado / e de agora acabar o dia em que escrevi, completamente exausto,/esta eternidade.» Assim o

    poeta nos deixa com o peso da memória motora.

    E criativa.


    Transcrições, ou recortes, não são possíveis para escrever sobre a participação de Jorge Velhote neste livro, através do jogo a preto e branco das suas fotografias. Não, não se trata de um livro «turístico», não há fotos do Palácio nem da Rua Escura. Há a interioridade do poeta-fotógrafo motivado pela leitura e conhecimento da pessoa Amadeu. São «derivas pessoalíssimas», como lhes chamou. Não o conheço tão bem, como conheço o outro poeta, mas interagimos, estou atento à sua atitude perante a poesia e as imagens. Neste caso, a atenção já vem de trás, a primeira vez que o li o «fotógrafo» em versos foi precisamente numa belíssima antologia de poesia - «Ao Porto», (ed. D. Quixote, 2001) - onde também participei. Dizia ele que «as casas envelhecem junto ao rio» e fala de «O fim dos dias preguiçosos contando histórias pelos cafés». Lembra-me a cultura dos cafés do Porto e a passagem em que Amadeu Baptista fala com alta precisão dos cavalos da praça D. João I, em frente ao café Rialto onde tomava um pingo, ainda em garoto. Lembra-me a célebre fotografia do grupo de escritores do Café Diplomata (1981) que eu gostaria de ter integrado, mas nessa altura já tinha batido as asas para outros voos. Alguns figurantes aparentemente desvalorizaram a sua aparição naquele grupo escultórico fotografado, mas hoje sabem bem que não estiveram ali por acaso. Ao Jorge digo que os amigos dos meus amigos meus amigos são. E, entre muitos outros capturados nessa fotografia, lá está o Amadeu Baptista e o Mário Cláudio, cuja homenagem ao seu percurso literário foi comissariada, em 2019, pela entrega e competência do Jorge Velhote, na Cooperativa Árvore.

                   Aos dois poetas, o prazer do encontro 

                    e reencontro nas palavras e imagens.



                                               foto de Jorge Velhote

1 Comentários:

Às 5:52 AM , Blogger Eugénia Soares Lopes disse...

Reflexão exemplar sobre um Poema e sua ilustração fotográfica; sobre dois poetas.

 

Postar um comentário

Assinar Postar comentários [Atom]

<< Página inicial