sábado, outubro 09, 2010

o funcionamento dos lugares de Amadeu Baptista


















(...)


Há uma zona em que o leito do rio está seco,


e vejo-te, Nuno, com a pá de madeira à procura


de crustáceos e moluscos, tens umas calças compridas,


estou eu de calções, e enchemos o olhar de búzios miúdos,


com espirais de madrepérola, reúne-se a magia ao real


e essa é a surpresa, poder no lodo descobrir centelhas


de diamante, e guardá-las nos bolsos


- dividimos o saque sob as copas das árvores, o que temos


retalha-se em ínfimos fragmentos, nem saque é, mas espólio


onde se incrustam feitiços, palavras, só palavras e resquícios de memória


sob a linha de guindastes na barra de Leixões,


os jacarandás em flor no horizonte,


a crista de clarabóias a sitiar a cidade,


acrescentando-a,


tomando o ar odores a baunilha e a hulha,


a sangue derramado,


a menarcas de mar


(...)



O difícil foi escolher uma passagem deste livro para colocar aqui no blog. Felizmente que não é um blog literário, é este bricabraque do costume. Tal como a apreciação de Nuno Dempster eu sou também suspeito a falar do livro, porque a infância do Amadeu tem muitos pontos e lugares coincidentes com os meus. Sobretudo na evocação de lugares, em que o livro é riquíssimo, com a cidade do Porto priveligiada. De resto, O Ano da Morte de José Saramago exibe uma vasta geografia, mostrando um país - entre muitas outras coisas - com o leitmotiv das lojas chinesas: Porto, com Alfândega, Cantareira, Lordelo, Foz (velha) Passeio Alegre, Cordoaria, Rua Escura, Miragaia, Guindais, Av. dos Aliados (com a menina nua) etc. e outras paragens, Viseu, naturalmente, pois ele aí tem morado, depois de passar por Lisboa (Tejo) e Almada e referências, algumas via Nuno Dempster, à Irlanda, à Guiné, e ainda à China, Singapura e Bruxelas, Berlim e Nova Iorque (Wall Street), Estocolmo, França, Áfricas... O mérito desta exterioridade localizada é ela apontar para a sua interioridade. Amadeu Baptista vai muito ao fundo de si e toca-nos profundamente. Comove. Porque, mais ou menos, estamos lá todos e porque aquelas particularidades são verdadeiramente universais. Eu continuava por aqui fora, mas vou parar, senão depois não sei como hei-de sair. O melhor é mesmo ler o livro, como dizem aqueles críticos que já não sabem mais o que hão-de dizer.



PS - Alguém sabe o que é o Doce da Teixeira e os rebuçados da Régua? Eu já comi os dois e agora apanhei-os como figurantes nesta valiosíssima obra de Amadeu Baptista.

E não falei dos capões, também mencionados no poema, porque isso poderia ser tomado como provocação.