quarta-feira, abril 13, 2016

Fugindo de Todos os Fogos


Publicado em Março de 2016.

São histórias em prosa poética, narrativas mais ou menos curtas

                                  Corrida de cão

Só quando regressei do medo das cobras e da noite sem estrelas é que reparei no cão. Nunca tinha visto um cão correr tanto, um rafeiro, como se fosse um galgo perseguindo uma pele de coelho puxada por uma máquina. Corria atrás de um carro, um Renault 5 TL, que devia ir mais ou menos a sessenta, o que não é muito. Mas para um cão é uma velocidade de Ferrari. Parece que o dono se tinha esquecido do animal, e aquele cãozito branco quase voava, com uma força interior que o fazia lutar assim até ao infinito para ter um carinho e um osso.
Ao longo da avenida, paravam pessoas para ver o espectáculo. Mas apenas durante uns segundos, pois a corrida louca passava num relâmpago. Só dei por isso, porque ia mesmo atrás do Renault e do cão, num Toyota de um gajo meu amigo do tempo da tropa, que parecia insensível à cena. Cheio de pena do bicho, desatei a roer as unhas da mão esquerda. Veio-me à cabeça uma lembrança de Moçambique, uma outra corrida, a de uma hiena malhada a perseguir um mabeco que acidentalmente se afastara do seu grupo.
Do rádio do carro saía um blue da Billie Holiday, cujo ritmo contrastava com a tal corrida louca. Entretanto começou a chover e o cão continuava a perseguir o carro, que abrandara numa passadeira. Logo a seguir, a chuva misturou-se com granizo, uma saraivada que fazia tambor do tejadilho, qual Billie Holiday, qual quê, só se ouvia o matraquear das pedras de água congelada.

O carro reduziu a velocidade com o granizo que começava a acumular-se nos passeios. E o cão, já sem forças, patinando repetidamente nas bolinhas de gelo, continuava ainda a correr atrás do carro, para depois cair e morrer exausto na maior corrida contra o abandono que vi neste mundo quando se perdem as matilhas.