Revisitei
agora alguns recantos da cidade onde nasci, através da leitura da
poesia de Amadeu Baptista: «Um dia na eternidade».
Tenho
um sentimento contraditório em relação ao Porto, onde vivi com
continuidade até aos dezoito anos. Sentimento do adolescente e do
jovem adulto que percorria muitos dos lugares mencionados no livro
deste poeta, mas também outros lugares dos rituais da minha
iniciação, livrarias, como a Divulgação, o TEP, o Cineclube do
Porto, o cinema Batalha, a Árvore, a galeria Alvarez, o café S.
Lázaro e a Esbap…, para não ficar apenas circunscrito às sandes
de presunto do Louro, à francesinha da Regaleira, aos tascos da
Travessa dos Congregados, ao clima tedyboyesco à volta da Xai-Xai,
ou aos bailaricos de garagem.
Não
tenho nenhuma saudade mórbida da cidade, mas mantenho uma certa
dose de ternura pelo Porto, com família já quase toda
desaparecida, e onde sobram ainda alguns amigos que conservo da
infância e adolescência. Como me dizia um amigo que, tal como eu,
deixou o Porto e se fixou em Lisboa «hoje era incapaz de viver no
Porto». Ambos interiorizámos outros modelos, outro modo de estar e
construímos família e amigos, ou seja, tudo o que torna impossível
um regresso utópico ao granito húmido nesta fase da vida.
A
leitura de «Um dia na eternidade», levou-me a reler a cidade, mas
também e a reler Amadeu Baptista onde reencontro a matriz da sua
obra - a perda como ponto (ou porto, ou Porto) de partida para a
interrogação sobre o enigma da poesia e da vida, os bons e os maus
objectos da infância: «a ver o rio ao longe/e a lembrar-me do que
foi a minha infância...», «mas era a língua de areia do
cabedelo que me fascinava,/aquele
surto de enigmas suspensos sob
um céu sem refúgio». E
isto a par do pormenor
picturesco
da dona adélia que «segurava na boca/uma multidão de
alfinetes, que depois espetava/numa pequena almofada de veludo,
todos em fila,/todos meticulosamente acomodados».
Amadeu
Baptista é sobredotado na sua agilidade poética, mas faz jus ao
próprio labor, grande parte das vezes numa compulsão obsessiva da
escrita no seu lado de poeta artífice «o poeta trabalha, mas não
é o encarregado da obra,/ é antes serralheiro, estivador, escrivão
das devassas,».
O
sentido da perda na sua poesia manifesta-se quase sempre através do
afastamento/desaparecimento da mulher idealizada, que partiu: «por
tanto te querer e não saber de ti./vou-me perder. o que queria era
voltar ao número setenta/ e oito da rua monte dos judeus, voltar
sessenta anos atrás,»
No
entanto, a memória do passado é motor de determinação e
esperança na imagem que nos dá da poesia e da vida, «vem-nos tudo
à memória, ainda que a ânsia/seja pelo que há-de ocorrer, por
tudo o que sabemos perdido/ e queremos reencontrar neste caminho, em
certo fio de água,/em certo campo aberto para que tudo se possa
reconstruir a partir de nada,»
De
resto, o poeta Amadeu consegue interligar o espaço-Porto ao
espaço-eu-poético, e a inquietação demonstrada ao longo das
páginas mistura-se com uma cidade que para si perdeu referentes,
embora conservando ainda os seus lugares emblemáticos, pois muita
vida se conserva na cidade conservadora ao lado da cidade de Gaia,
onde se continua, atravessando o rio, e onde Amadeu Baptista tem
passado a maior parte da sua vida em interrogações que fazem
lembrar questões levantadas por Manuel António Pina, que ele bem
refere neste livro: «(MAP) Porquê a poesia/ e não outra coisa
qualquer:/ a filosofia, o futebol, alguma mulher?»
Ai
da cidade que não queira ler este livro do Amadeu Baptista!
Ai
de quem não possa, através destes versos, confrontar-se com o seu
passado - ou presente - onde se lê a identidade da pessoa e do
velho burgo em imagens de uma grande intensidade: «quem
sou nesta cidade? o que lhe
devo para nunca me dar nada/ além dos respingos de luz que se
levantam/sobre a pena ventosa, os caldeireiros, a sé?»
São
escassas as minhas palavras para falar da poesia dos outros.
Socorro-me de uma selecção subjectiva de palavras e de versos, de
momentos, de imagens, de acontecimentos. Felizmente não sou crítico
encartado, aqueles a quem tantas vezes censuro por analisarem um
livro quase só através de transcrições. No entanto não faz
sentido omitir os últimos versos do livro «lembro-me, lembro-me.
lembro-me de tudo, lembro-me de estar cansado / e de agora acabar o
dia em que escrevi, completamente exausto,/esta eternidade.» Assim
o
poeta
nos deixa com o peso da memória motora.
E
criativa.
Transcrições,
ou recortes, não são possíveis para escrever sobre a participação
de Jorge Velhote neste livro, através do jogo a preto e branco das
suas fotografias. Não, não se trata de um livro «turístico»,
não há fotos do Palácio nem da Rua Escura. Há a interioridade do
poeta-fotógrafo motivado pela leitura e conhecimento da pessoa
Amadeu. São «derivas pessoalíssimas», como lhes chamou. Não o
conheço tão bem, como conheço o outro poeta, mas interagimos,
estou atento à sua atitude perante a poesia e as imagens. Neste
caso, a atenção já vem de trás, a primeira vez que o li o
«fotógrafo» em versos foi precisamente numa belíssima antologia
de poesia - «Ao Porto», (ed. D. Quixote, 2001) - onde também
participei. Dizia ele que «as casas envelhecem junto ao rio» e
fala de «O fim dos dias preguiçosos contando histórias pelos
cafés». Lembra-me a cultura dos cafés do Porto e a passagem em
que Amadeu Baptista fala com alta precisão dos cavalos da praça D.
João I, em frente ao café Rialto onde tomava um pingo, ainda em
garoto. Lembra-me a célebre fotografia do grupo de escritores do
Café Diplomata (1981) que eu gostaria de ter integrado, mas nessa
altura já tinha batido as asas para outros voos. Alguns figurantes
aparentemente desvalorizaram a sua aparição naquele grupo
escultórico fotografado, mas hoje sabem bem que não estiveram ali
por acaso. Ao Jorge digo que os amigos dos meus amigos meus amigos
são. E, entre muitos outros capturados nessa fotografia, lá está
o Amadeu Baptista e o Mário Cláudio, cuja homenagem ao seu
percurso literário foi comissariada, em 2019, pela entrega e
competência do Jorge Velhote, na Cooperativa Árvore.