sem sentido
colagem A. Ferra - 2004
Perder os sentidos
Na sala de curativos, logo à entrada daquele hospital, o homem gemia ai, ai, que a vida é tão bonita. Aparentava uns cinquenta anos, era magro, vestia uma camisa azul e uns jeans coçados, de má qualidade. Estava deitado numa marquesa, de barriga para o ar, o rosto transpirado. Depois dizia coisas descontextualizadas, a casa, as maçãs, a Tininha, o armário branco, dá de comer ao cão. Era um amontoado de palavras presas por um linha muito ténue. Eu, que ia ter com um médico para me ver uma ferida recorrente, guardei aquilo no ouvido - ai, ai, que a vida é tão bonita -, e o amontoado de palavras.
Uma pessoa fica tão indefesa quando está deitada num hospital! Principalmente quando tem que se despir, quando perde a protecção que a roupa dá, ou quando perde aquela linha muito ténue que serve para dar sentido às palavras isoladas. Então, indefesa, uma pessoa pode ser quase recém-nascida, esbracejando um chorrilho de palavras soltas. Permanece sob uma ameaça caótica.
1 Comentários:
Passei por cá e gostei.
Quanto ao post: uma pessoa sente-se de facto indefesa numa cama do hospital, especialmente se nos metem um líquido qualquer dentro e dizem: "não se assuste mas vai sentir uma sensação estranha, como de uma morte iminente." O funcionamento de certas coisas é estranho...
Continuação de bons posts.
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