domingo, setembro 16, 2012

Arte Poética de Amadeu Baptista



Ficam-nos sempre alguns versos na memória e até os dizemos de cor, prontos a serem reavivados, quando encontramos em leituras algum eco dessas marcas.

The Child is father of the Man;
I could wish my days to be
Bound each to each by natural piety.

                 William Wordsworth (1)

Foram estes que emergiram e ganharam forma renovada ao ler «Atlas das Circunstâncias» (2), de Amadeu Baptista, amigo poeta que sigo de perto.
Na escrita de Amadeu assinala-se, antes de mais, um contraste entre os momentos de maior robustez da escrita e a delicadeza que coloca noutros momentos, cheios de afecto e infâncias mais ou menos codificadas (3), onde também se convive com a intensidade do texto poético feito na carne e no sofrimento - os seus “antecedentes criminais” (4), que incluem também amargurada denúncia da crueldade do homem sobre o homem e da degradação social, que de onde a onde vai assinalando. Quase sempre com o pão e os cereais presentes, e recorrentes, numa sacralização dos direitos mais básicos e preciosos da vida: O pão não é só migalhas, mas a força/ que põem as mulheres a amassá-lo/ e a perícia com que os homens/ nos campos o amansam.

Neste livro, com trinta e quatro poemas, logo nos coloca perante aquela ideia poética que me fez lembrar Wordsworth: O homem é, antes de mais criança./Tem olhos para ver e sabe ouvir/tudo o que se agiganta sobre as casas,/ A chama da candeia sobre a mesa/.

E a criança prossegue ao longo do livro: Rolam-se as palavras sob a língua, como seixos, /nesse tempo de débeis redenções. De calções/e crostas nos joelhos uma criança/sopesa-lhe a leveza, e intensifica-as/.

Até que chega à adolescência, numa ruptura, É quando a adolescência dispara pelos campos/ e colhe das origens sentidos sacros,/ ou numa indefinição transitória marcada por versos como estes: É anfíbia a adolescência do poeta./ Distinguem-se-lhe no torax barbatanas/ dorsais e pulsam-lhe , na garganta , pequenas brânquias…/ o que me faz lembrar o filme «Waterworld» com Kevin Costner a protagonizar essa adaptação aquática.

Depois, neste atlas das circunstâncias, chega-se à idade adulta, onde a cinza preenche o farto cabelo de Amadeu poeta e pessoa: Há palavras com que a cinza delimita/ a idade adulta do poeta, a sua serpe,/ a sua cítara, a sua asma/ que só um banho lustral há-de calar/.

Antes de terminar o livro, há um regresso à evocação da infância: Eis que o poeta vê, entre roseiras/ um cão preto e, assim, de súbito, remonta/ à sua infância e á infância do poema, / O pretexto foi o medo infantil do cão preto, fantasmas que nos podem sempre acompanhar. Mas para mim, neste contexto, a infância é também uma imagem do conhecimento. Não apenas na apropriação ingénua dos românticos, inspirados em Rouseau. Tal como na loucura e no sonho não existem neste estádio amarras racionais suficientemente fortes para travar os fulgores mortais, no último poema, onde escreve ainda a infância é boa conselheira se instiga /a que se desoculte o abismo…/
« I could wish my days to be bound each to each by natural piety.», posso eu terminar, inspirado pelo percurso ao longo deste atlas.


(1) William Wordsworth, - Oxford University Press, Selected Poems (Poems referring to the period of childhood).

(2) Amadeu Baptista – Atlas das Circunstâncias, ed Lua de Marfim, Lisboa, Julho 2012.

(3) Amadeu Baptista - Açougue, ed &etc, Lisboa 2012. (v. poema «dois mil e oito»)

(4) Amadeu Baptista – Antecedentes Criminais, ed Quasi, V.N. Famalicão,2007.





3 Comentários:

Às 3:26 PM , Blogger nêspera disse...

:)
Vim aqui parar por mero acaso...
Pensei:
— Será que este António Ferra é ‘O' António Ferra?!?!? O António Ferra que me ofereceu aquele palhaço fantástico, pintado em papel cartonado?!?!? Sim, aquele palhaço, quiçá ;), baseado no Clown-Corremundo ou vice-versa (acho que nasceu primeiro o meu, pois eu era muito criança...)?!?!?

Fui vasculhar tudo... e não é que é MESMO o António Ferra!?!?!

Pois bem, tenho aqui ao meu lado o ‘Zé Pimpão, João Mandão e os sapatos feitos à mão’, devidamente autografado pelo autor. Está datado de 78. Surripiei-o de uma estante familiar para a realização de um trabalho no ano lectivo passado...

O palhaço, esse perdeu-se entre muitas mudanças. Mas guardo na minha memória e no meu coração cada traço e cada cor... Se fizéssemos um retrato-robot ficaria igualzinho! :)

És capaz de não te lembrares de mim... Eu era muito criança... Mas mesmo assim, mando-te um abraço do tamanho da paixão que tenho pelo meu palhaço desaparecido! :)






 
Às 5:08 PM , Blogger António Ferra disse...

Obrigado por essas palavras tão gratificantes. Grande abraço

 
Às 5:08 PM , Blogger António Ferra disse...

Obrigado por essas palavras tão gratificantes. Grande abraço

 

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