terça-feira, janeiro 10, 2006

respigar sons

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linha melódica das árvores

Passeio eu, agora, a pé, pela dureza do chão da cidade, compa­rando o piso de cimento ou asfalto com a maleabilidade acolhedora da madeira. Lembro‑me que, uma vez, sentia o piso ainda mais fofo, quando caminhava, num Outono, sobre folhas caídas, acumuladas e húmidas, um receptivo tapete. Estava algures noutro país da Europa e, na minha frente, estendia‑se um prado verde - outro tapete aveludado entre montanhas. Nesse prado pastava preguiçosamente uma manada de vacas. Todas traziam um chocalho e, enquanto as observava, registei num pequeno gravador os sons das vacas no movimento livre que executavam a pastar. Era um som, ou melhor, um conjunto de sons com uma harmonia própria e o ritmo da necessidade biológica de se curvarem para comer. Quem respiga objectos e imagens também pode respigar sons abandonados, perdidos num prado de postal. Era um dlim‑dlom inexplicável, muito arcaico, ecoando no silêncio. Só a disponibilidade para escutar me fazia distinguir na natureza a marca que o homem lhe fez, ao assinalar o gado com aqueles chocalhos suspensos.Mais tarde, muito mais tarde, deram‑me a ouvir música dita do Bali. Curioso! Os sons eram exactamente os mesmos, só que arrumados de maneira diferente. Dir‑se‑ia que, apesar da distância entre a Europa e a Ásia, o homem resolveu estruturar o mesmo conjunto de sons. De um aparente caos passou-se a um aparente cosmos.
O que isto provocou em mim ‑ talvez a minha grande lição sonora ‑ foi a compreensão dessa capacidade humana de à mesma matéria‑prima dar forma diferente e transformá‑la, adaptando‑a ao ritmo da sua cultura, na passagem de um certo caos a um certo cosmos.
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imagem de "les glaneurs", de Agnés Varda

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